segunda-feira, 17 de janeiro de 2022

Sirius: o que é e como funciona o acelerador de partículas brasileiro


ESTRUTURA DA PROTEÍNA 3CL (FOTO: CNPEM

 Imagine se fosse possível, em 20 anos, dar um salto tecnológico das fotos feitas pelas primeiras câmeras fotográficas do século 19 para os mais modernos equipamentos digitais de vídeo do século 21. É exatamente isso que está acontecendo em Barão Geraldo, bairro boêmio de Campinas (SP), onde está não apenas a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), mas também o Sirius.

Batizado com o nome da estrela mais brilhante do céu noturno, o acelerador de partículas de 68 mil metros quadrados inaugurado em 2018 é a maior e mais complexa infraestrutura de pesquisa já construída no Brasil. Orçado em R$ 1,8 bilhão, ele promete viabilizar estudos nacionais de qualidade sem precedentes no mundo.


Mas o que seria um acelerador de partículas? Bem, diferentemente da câmera que capta paisagens e pessoas, essa imensa máquina consegue revelar detalhes das estruturas dos átomos. O Sirius é considerado um equipamento de quarta geração, que compete com um instrumento parecido na Suécia, inaugurado em 2016, e com o upgrade do European Synchrotron Radiation Facility (ESRF), na França.

Ele é diferente, por exemplo, do Grande Colisor de Hádrons (LHC), na Suíça. Neste, as partículas são aceleradas à máxima potência a fim de criar colisões para se investigar o núcleo dos átomos, gerando condições análogas às que teriam criado o Universo, no Big Bang. Já o Sirius acelera elétrons próximo à velocidade da luz, numa via na qual todos caminham numa mesma direção sem um trombar no outro, e até uma energia fixa de 3 giga elétron-volt (GeV). O LHC, por sua vez, pode dar energia máxima de 7 mil GeV.

A medida de energia é o joules, mas para eventos muito pequenos como a energia de átomos e elétrons, a unidade de medida utilizada é o elétron-volt, que é a energia adquirida por um elétron quando submetido a uma tensão de 1 volt. Para se ter uma ideia da energia dos elétrons que circulam no Sirius, é como fosse possível aplicar o choque de 1 bilhão de baterias de 3 volts, aquelas usadas em relógios, em um elétron. E com essa energia, os elétrons passam por dois aceleradores até chegar ao anel principal de armazenamento, de 518,4 metros de circunferência.


Para realizar curvas, são usados poderosos ímãs, chamados dipolos. Toda vez que entra em ação a força do dipolo, os elétrons se convertem em luz. A luz resultante desse processo é a luz síncroton, de altíssimo brilho e que passa pela luz visível, ultravioleta, infravermelho e, especialmente, raios-x. Estes são a grande ferramenta para se investigar os átomos, a principal partícula buscada pelos pesquisadores.

Além dos dipolos, o Sirius tem ainda um conjunto adicional de ímãs chamados “onduladores”. Eles são uma sequência de ímãs que realizam zigue-zagues nos elétrons durante a curva e que colaboram para que a luz produzida seja 10 mil vezes mais intensa do que a gerada no UVX, o primeiro aparelho de luz síncroton do país, inaugurado na década de 1990 e que foi desativado para dar lugar ao Sirius. “Era como tirar uma foto com baixa iluminação. O Sirius, por ter muito mais intensidade, consegue fazer isso de forma mais rápida, como se fosse um filme versus uma foto”, compara Antonio José Roque da Silva, diretor-geral do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM) e do projeto Sirius. Outra comparação interessante é que o UVX era como uma lanterna, com baixa luminosidade espalhada em muitos ângulos; já o Sirius seria como uma ponteira a laser, com foco preciso e de alta intensidade.


O objetivo é criar um total de 38 linhas de pesquisa nos túneis para onde a luz síncroton é canalizada e nos quais podem ser realizados diversos experimentos. Para ter ideia, um dos túneis chega a 145 metros de comprimento, espaço fechado a vácuo onde ficam diversos equipamentos extremamente sensíveis que captam a luz que difrata das amostras e controla energia e intensidade.

Como é possível mais de uma estação de pesquisa em algumas das linhas, haverá um total de 40 estações. Cada linha passa por um comissionamento técnico e um comissionamento científico. No primeiro caso, os equipamentos são testados sem experimentos; no segundo, pesquisadores que têm experiência com a extração de dados do acelerador são chamados a testar seus estudos. Até o início de 2021, cinco linhas devem entrar em processo de comissionamento técnico; e um total de 14 linhas devem ser entregues até o começo de 2022.

Potência contra a Covid-19


Em decorrência da pandemia de Covid-19, o comissionamento técnico da linha Manacá, exclusivamente voltada para biologia molecular, foi acelerado. Em março deste ano, o comissionamento científico teve início já com pesquisas de cristalografia de proteínas do Sars-CoV-2, na busca de conseguir soluções para se criar medicamentos contra o novo coronavírus.

As pesquisas aconteceram em dois momentos, com cientistas do Laboratório Nacional de Biociência (LNBio), do CNPEM, e da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Em julho, os cientistas do LNBio conseguiram desvendar duas estruturas em três dimensões inéditas da proteína 3CL, que tem importante papel na replicação do vírus nas nossas células. E o grupo de São Carlos buscou analisar estruturas de cristais de proteína do vírus para avaliar que tipos de substâncias se ligariam a elas, no intuito de impedir o Sars-CoV-2 de infectar as células. “Os dois grupos obtiveram estruturas bem promissoras, que estão envolvidas no metabolismo viral e em processo de replicação dos vírus”, explica Mateus Cardoso, pesquisador do CNPEM e chefe da Divisão de Materiais Moles e Biológicos do Sirius, sem dar maiores detalhes sobre as pesquisas.

Mas, para que se transformem em medicamentos, essas pesquisas têm um longo caminho a percorrer. “Em primeiro lugar, foi uma felicidade enorme porque, de fato, o equipamento entrou em funcionamento, o que muitos duvidavam. Temos melhores ajustes a fazer e começar a dar mais resultados”, diz Silva.


A linha Manacá, por exemplo, voltou do comissionamento técnico em outubro. Dentro do túnel da linha de pesquisa, há um equipamento chamado monocromador, que seleciona o nível de energia a ser aplicada nas amostras. Para acelerar os estudos com a cristalografia do vírus, utilizou-se uma faixa fixa de energia, que agora precisa de ajustes para ampliar a gama de aplicações.

Outras aplicações


Além das pesquisas sobre Covid-19, o Laboratório Nacional de Biorrenováveis (LNBR), do CNPEM, realizou na Manacá estudos com enzimas de biomassa de cana-de-açúcar, com o objetivo de conseguir novas formas de aproveitamento da energia renovável. Das 38 linhas do Sirius, sete serão dedicadas exclusivamente ao estudo da biologia molecular. E será possível pesquisar materiais tão diversos como células humanas e rochas de poços de petróleo a novas tecnologias de energia renovável, máquinas industriais e até novos telescópios e receptores de radiação cósmica.

Na edição de outubro de 2020 do periódico Chemosphere, pesquisadores da Universidade Federal do Espírito Santo, da Universidade de São Paulo e da Universidade Federal do Sul da Bahia publicaram um estudo em que utilizaram a luz síncrotron do UVX para descobrir a “impressão digital” dos rejeitos gerados pelo rompimento da barragem do Fundão, em 5 de novembro de 2015, em Mariana (MG). Os cientistas obtiveram dados inéditos da composição química e mineralógica dos sedimentos na foz do Rio Doce e da lama que atingiu a região. Até o fim de 2021, novas amostras serão analisadas no Sirius.

Outro campo de pesquisa importante é sobre a estrutura de raízes de plantas e do solo, que poderão impulsionar a agricultura e o desenvolvimento de fertilizantes. É possível, por exemplo, acomodar o experimento dentro de uma caixa de metal que simule níveis de pressão, seja embaixo da terra, seja em um sistema de produção industrial

No último dia 21 de outubro, o presidente Jair Bolsonaro participou da cerimônia de inauguração oficial da linha Manacá. E o governo anunciou que estuda um Laboratório de Biossegurança de Nível 4 no local, o único do mundo que teria uma linha de luz síncroton, especialmente para estudar vírus como o Sars-CoV-2. A Unicamp tem um laboratório de virologia nível 3, usado pelos mesmos pesquisadores que têm trabalhado no Sirius.

O ineditismo do acelerador made in Brazil, contudo, terá realmente início quando entrar em operação a linha de pesquisa Cateretê, que está em fase de comissionamento técnico e que deve receber o feixe de luz até dezembro. Segundo Cardoso, essa linha permitirá enxergar estruturas micrométricas com resolução de nanômetros, como células de mamíferos. É como se fosse possível ver a imagem de um elefante com uma resolução capaz de analisar partes menores que o pelo do animal. “Será a primeira estação do mundo que vai permitir fazer medidas de células de mamíferos, bota aí 20 mil nanômetros – que são bilhões de átomos. Mas mesmo sendo um tamanho grande, vamos conseguir identificar coisas da ordem de 20 nanômetros. Em lugar nenhum do mundo isso já foi feito. Isso vai nos permitir colocar o Brasil em lugar de destaque absoluto”, comemora o chefe da Divisão de Materiais Moles e Biológicos do Sirius.

Nessa linha, explica Cardoso, além de pesquisas envolvendo vírus, será possível realizar estudos com catalisadores de automóvel, desenvolvimento de plantas e nutrição celular, com a imensa capacidade de observar o mundo micro e, ao mesmo tempo, nano. “O Sirius potencializa, de forma bastante singular, a capacidade de pesquisa do sistema brasileiro. Permitirá que se investigue diferentes tipos de materiais de forma que antes era impossível no Brasil“, garante Silva.


Mas, para tanto, é essencial que se invista em ciência e tecnologia — e isso passa, principalmente, por garantir formação e postos de trabalho a cientistas. “Afinal, quem atua e resolve os problemas são os pesquisadores, que precisam existir e ter as condições de fazer perguntas sofisticadas e poder acessar o Sirius para que possa auxiliá-los”, pondera o diretor-geral do CNPEM. E, infelizmente, esse parece ser um desafio ainda maior no atual cenário brasileiro.


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